Disco voador" da guerra fria foi um fiasco
Americanos queriam construir um 'pires' que voasse, mas hoje ele está num depósito empoeirado
Era 1952 e a guerra fria estava mais gelada que nunca. A Comissão de Atividades Antiamericanas, de Joe McCarthy, procurava vermelhos até debaixo da cama. Os relatos sobre Objetos Voadores Não Identificados (Ovnis) propagavam-se como epidemia nos Estados Unidos. Até pilotos da Força Aérea informaram ter sido perseguidos por "pires voadores". A sensação de pavor transformava-se em frenesi e a Agência Central de Informações (CIA) decidiu que era preciso fazer algo.
Num de seus muitos memorandos sobre o assunto, H. Marshall Chadwell, subchefe do Escritório de Informações Científicas da CIA, opinou que "algo estava ocorrendo e merecia atenção imediata". Ele e outros na agência receavam que a União Soviética estivesse desenvolvendo uma arma secreta baseada nos "discos voadores", que, segundo rumores, os nazistas haviam fabricado nos últimos anos da 2ª Guerra.
Documentos dos arquivos da CIA recém-liberados estão repletos de relatos de ex-cientistas alemães sobre seu desesperado trabalho para salvar a mãe-pátria com uma revolucionária aeronave circular capaz de alcançar velocidades enormes. Mas, em 1952, quando a CIA criou um grupo para estudar o fenômeno, descobriu algo extraordinário, muito mais perto. Logo além da fronteira, no Canadá, engenheiros britânicos produziam um disco voador próprio.
Chamava-se Projeto Y - uma incursão britânico-canadense no desconhecido, que foi em grande parte dos anos 50 o projeto de aviação mais sigiloso do mundo ocidental. Meio século depois, a história do Projeto Y continua sendo um capítulo notável e esquecido na história do design aeronáutico, que esteve na iminência de romper todas as normas do céu, mas redundou em amargo desapontamento por falta de dinheiro e de convicção.
Lá pelos anos 50, a notícia de que especialistas britânicos estavam construindo um "pires" alarmou a CIA. Os EUA estariam sendo passados para trás por seus mais tenazes aliados na corrida em busca de uma vantagem tecnológica? E, se a Inglaterra e o Canadá podiam construir um "pires voador", a União Soviética devia estar muito à frente.
Chadwell queria respostas. A sensação de urgência é palpável num memorando que ele mandou em junho de 1954 aos chefes de seu departamento, exigindo informações sobre o "emprego, por qualquer potência ou nação estrangeira, de tipos não convencionais de veículos aéreos, como os ou semelhantes aos aviões `com formato de pires' em fase de desenvolvimento a cargo dos britânicos e canadenses". Enquanto agentes da CIA eram despachados para vigiar o céu à procura de "pires voadores", oficiais da Força Aérea dos EUA faziam visita a Malton, perto de Toronto, onde ficava o aeroporto da cidade. Malton também era centro de pesquisas da Avro-Canada.
A Avro era subdidiária da companhia britânica de aviação AV Roe (contava a lenda que não havia no teto da fábrica espaço para incluir o "e" de Roe) que por sua vez fazia parte do lendário grupo de produção aeronáutica Hawker-Siddeley.
Durante a guerra, seus engenheiros ficaram famosos por causa do caça Hurricane e do bombardeiro Avro Lancaster. A seguir, sob a tensão da guerra fria, eles tentavam algo totalmente distinto. Depois da guerra, Malton era o local buscado pelos melhores projetistas de aviões que fugiam da condenada indústria aeronáutica britânica.
Um deles era John Carver Meadows Frost, de 31 anos, fala mansa e muito talento. Ele já havia conquistado a fama de ser projetista heterodoxo ao desenvolver o delgado De Havilland 108, avião de pesquisa com formato de andorinha.
Frost foi levado para a Avro-Canada para trabalhar no caça CF-100, feio e de nariz arrebitado, que ele nunca apreciou. Logo Frost ficou obcecado com desvios mais radicais da ortodoxia. Não dá para saber se ele buscou inspiração nas histórias cada vez mais populares sobre "pires voadores" pilotados por extraterrestres que flanavam nos céus pós-guerra fria ou até que ponto ele se baseou em pesquisas anteriores.
Talvez Frost tivesse ouvido falar do "efeito Coanda", assim chamado em homenagem ao inventor franco-romeno Henri-Marie Coanda, que fizera experiências com a primeira turbina rudimentar a jato em 1910. Coanda descobrira que um turborreator não dava apenas empuxo. Sugando ar, podia também criar um vácuo sobre a asa e assim dar mais sustentação.
São muitas as evidências de que na etapa final da 2ª Guerra, quando os dois lados lançaram caças a jato na refrega pela primeira vez, os nazistas começaram a fazer experiências com armas secretas baseadas no "efeito Coanda". Um dos documentos existentes nos arquivos secretos da CIA é uma entrevista concedida por um engenheiro aeronáutico alemão, Georg Klein, que afirmava ter trabalhado num "pires voador" sob a chefia de projetistas da Luftwaffe, Rudolf Schriever e Richard Miethe.
Outro documento que se encontra nos arquivos é um artigo escrito em 1950 por um alemão emigrado para o Chile, que dizia chamar-se dr. Eduard Ludwig. O artigo, oferecido a uma revista chilena mas ao que parece nunca publicado, levava o título: "O mistério dos `discos voadores' - uma contribuição para sua possível explicação." Contava sobre o trabalho de Ludwig no tempo da guerra num centro de pesquisas da Junkers, ajudando a desenvolver uma "asa metálica formada de uma só peça" que funcionava como um "topo de alta rotação", capaz de fazer decolagem vertical e alcançar grande velocidade.
"As experiências revelaram-se extremamente difíceis e resultaram em muitas vítimas", comentou o professor, visivelmente desgostoso porque o topo rotativo não dera certo antes de o Exército Vermelho chegar. Ele concluiu: "O futuro vai mostrar se os `discos voadores' são apenas fruto da imaginação ou se resultam da ciência alemã mais avançada que possivelmente, a exemplo das bombas atômicas quase prontas, podem ter caído em poder dos russos."
De fato, alguns dos maiores engenheiros da Luftwaffe foram parar em Moscou, enquanto um punhado, como Wernher von Braun e dr. Miethe, foram despachados às ocultas para o Ocidente. Claro que o dr. Von Braun se tornou o pai do programa espacial dos EUA. Ninguém sabe ao certo o que foi feito de Miethe.
No seu trabalho em Malton, John Frost pareceu que ia às apalpadelas. Ele estava à procura do Santo Gral da aeronáutica, a espaçonave de decolagem e pouso vertical (VTOL), mas começou as pesquisas num aparelho com formato de pá antes de se fixar, em 1953, num disco. A concepção original previa um só turborreator chato para sugar o ar de cima e forçar sua passagem através de bocais situados na periferia do aparelho. Um colchão de ar o manteria suspenso e o efeito Coanda o impulsionaria para o alto.
O trabalho inicial foi feito em sigilo total. Só alguns empregados da Avro foram informados do que se passava, e até alguns dos engenheiros que criavam componentes individuais não ficaram sabendo do que se tratava. "Aquilo era tão sigiloso que, quando Frost ia à oficina de soldagem, desenhava num papel a peça que queria e, quando a terminávamos, púnhamos o desenho num saco de lixo especial", lembrou Alex Raeburn, chefe da oficina da Avro na época.
Verne Morse, o fotógrafo da companhia, só se familiarizou com o projeto quando este já assumia forma definida. "Corria pela fábrica o estúpido rumor de que estávamos construindo um pires voador e todo mundo ria", contou Morse. "Lá um belo dia fui chamado pela segurança, e me disseram que eu precisava submeter-me a exames de idoneidade porque estávamos trabalhando num pires voador. Minha primeira impressão foi achar que aquilo era ridículo." Mas, quando fizeram Morse passar por guardas e atravessar as portas duplas do Projeto Y, ele viu o lustroso disco de metal tomando forma e perdeu a fala. "A impressão foi realmente espantosa", lembrou Morse.
Mas o primeiro ano do Projeto Y foi cheio de transtornos. A turbina a jato esquentou tanto que derreteu a estrutura de aço do aparelho, e seus solavancos arrancaram os rebites. Quando membros da Força Aérea dos EUA (Usaf) chegaram em setembro de 1953, o governo canadense, que já havia gastado US$ 400 mil no projeto, transferiu de bom grado sua chefia a um patrocinador maior. A AV Roe, que não conseguira arrancar recursos do governo britânico, também recebeu os americanos de braços abertos.
Em 1955, o Projeto Y tornou-se o sistema 606A do Departamento de Defesa (Pentágono) dos EUA, e uma estrela branca da Usaf foi pintada na fuselagem do protótipo. Agora, milhões de dólares eram despejados no projeto e a preocupação com o sigilo aumentou.
Alex Raeburn lembrou que num certo dia de 1959 homens da Marinha dos EUA chegaram para levar o protótipo e submetê-lo a testes no túnel de vento perto de Los Angeles. "Nós o colocamos num caminhão de fundo chato no meio da noite. Policiais interditaram o trânsito até o Porto de Toronto e puseram o protótipo num rebocador americano. Um de nossos homens precisara prestar juramento à Marinha dos EUA para que pudesse acompanhá-lo através do Canal Erie, ao longo do curso d'água intercostal de Nova York, e atravessasse o Canal do Panamá."
Com a ajuda dos recursos americanos, Frost havia redesenhado o projeto original, instalando três pequenas turbinas a jato em torno de uma ventoinha central que sugaria o ar através de um coletor circular situado no centro do disco. O piloto ficaria sentado numa pequena cabine oval de lado, sob uma cápsula.
Mas os testes no túnel de vento mostraram que a arma secreta 606A tinha sérios problemas de estabilidade e corria o constante risco de dar cambalhotas como uma panqueca quando as válvulas de suas turbinas fossem abertas. Frost e seus assistentes trabalharam na solução dos problemas durante mais de um ano, mas ainda não os haviam eliminado no inverno de 1960 quando Spud Potocki, ex-piloto da Força Aérea polonesa, entrou no protótipo para o primeiro vôo.
Ernie Happe, outro engenheiro britânico, foi um dos poucos que tiveram permissão para assistir à decolagem. "Estávamos em volta do protótipo, amarrado por três cabos para impedir que desse cambalhotas. Ele se ergueu alguns metros do chão, com Potocki sentado na cabine mexendo nos controles, tentando fazer com que ele funcionasse conforme previsto."
Nos meses seguintes, enquanto Potocki desenvolvia maior sensibilidade para com os melindrosos controles, permitiram que ele circulasse pelo complexo da Avro, sem peias. Podia entrar nos hangares e sair. Raeburn às vezes olhava através da janela de sua oficina e via o protótipo flutuar. "Ele (Potocki) subia e descia, pairava sobre a praça de manobra feita de concreto e olhava pelas portas dos hangares", contou Raeburn. "Lembro-me de que o vento chupava o gelo das poças dágua, que flutuava como lâminas de vidro."
A diretoria da Avro ficou muito contente de ver seu pires voador decolar. O departamento de propaganda começou a preparar folhetos para explorar o ilimitado potencial da aeronave no dia em que o manto de sigilo fosse removido. O aparelho se chamaria Avrocar e daria origem a uma série de naves civis e militares. Haveria um Avrowagon para a família do futuro, um Avroangel (uma ambulância aérea que partiria a toda velocidade para o local de um acidente) e um Avropelican (para resgates aéreos no mar e guerra anti-submarina).
Ken Palfrey, um desenhista do projeto, lembra as grandes esperanças que Frost depositava em sua empreitada. "Ele planejava produzir um que fosse quatro vezes maior, levar tropas para dentro e fora do campo de batalha, conforme os helicópteros fazem hoje."
Os gigantescos veículos de transporte de tropas passariam sob o radar do inimigo, lançariam seus ocupantes e subiriam velozmente para a estratosfera antes mesmo que o outro lado conseguisse localizá-los. Happe lembra que Frost se emocionava visualizando a espaçonave a ultrapassar as camadas superiores da atmosfera e atravessar continentes num só embalo.
A realidade era mais prosaica. O Avocar pairava bem quando perto de terra firme, mas ficava perigosamente instável a alturas pouco superiores a 2,4 metros, por mais que Spud Potocki se esforçasse nos controles. A Usaf queria instalar no Avocar uma cauda de avião para ver se sanaria o problema, mas Frost, purista do design, rejeitou a idéia.
"Ele não ia aceitar aquilo. Quando os americanos fizeram a sugestão, foi a única vez que vi Spud ficar com raiva", lembra Palfrey. Frost insistiu que conseguiria solucionar as deficiências, mas as forças armadas americanos perdiam interesse bem depressa. Depois de gastar US$ 7,5 milhões, o Departamento de Defesa cancelou o projeto no fim de 1961, acabando com o Avrocar e infligindo um golpe fatal na Avro, que ainda lutou por alguns anos, mas faliu em 1965. Frost partiu do país em 1961, amargurado. "Ele estava farto", disse Palfrey. "Foi uma triste história. Ele era um cara excelente. Um cavalheiro."
O projetista britânico foi parar em Auckland, onde passou o resto de seus dias sonhando produzir engenhocas para a companhia Air New Zealand entre elas uma rampa de acionamento hidráulico na cauda, para que os mecânicos tivessem fácil acesso aos aviões comerciais. Mas aquilo era café pequeno se comparado às ambições cósmicas do Projeto Y e a sensação de que Frost fora traído parecia-lhe tão aguda quanto antes, quando ele se aposentou, em maio de 1979.
Nas entrevistas com que se despediu, Frost declarou à imprensa local que sir Christopher Cockerell lhe roubara o mérito de ter inventado o hovercraft. A ironia é que, em Malton, os olhos de Frost estavam tão presos aos céus que ele não conseguiu perceber o potencial terrestre do Avrocar, bem à vista. Frost morreu poucos dias depois de deixar o emprego. Tinha 63 anos.
A lenda do Projeto Y sobrevive nas páginas da World Wide Web da Internet mantidas por ufólogos devotados. Alguns especulam que foi um sucesso espantoso e a triste lengalenga sobre erros de projeto e acontecimentos decepcionantes, lembrados por veteranos da Avro, não passava de disfarce. Outros acreditam que o projeto foi mera cortina de fumaça para o "verdadeiro" projeto do pires voador do Pentágono, desenvolvido em bases secretas como a de Roswell, talvez por misteriosos nazistas aposentados como o dr. Miethe.
Quanto à arma secreta 606A, o protótipo está empoeirando no canto de um armazém em Maryland, depósito do Museu Nacional de Aeronáutica e Espaço. Jack Walker, veterano piloto que mostra o armazém a visitantes, não consegue entender por que alguém quereria ver o 606A e pede que eu não me aproxime muito, pois posso ser sequestrado por extraterrestres.
O disco de metal polido, de 15 metros de diâmetro, está esquecido sob a asa de um caça Black Widow da 2ª Guerra Mundial. A cápsula sobre a cabine foi removida, seu painel de instrumentos está dentro de uma caixa de papelão nalgum outro lugar. Mas ainda se pode ver onde as bordas foram carbonizadas quando o visionário John Frost fez a vã tentativa de ganhar os céus.
Walker está ficando impaciente e balança a cabeça. Estamos demorando demais num beco sem saída da aviação e é preciso ver aviões muito mais importantes. "Não sou engenheiro aeronáutico", grita ele por cima do ombro. "Mas digo que aquilo não ia voar de jeito nenhum."
Era 1952 e a guerra fria estava mais gelada que nunca. A Comissão de Atividades Antiamericanas, de Joe McCarthy, procurava vermelhos até debaixo da cama. Os relatos sobre Objetos Voadores Não Identificados (Ovnis) propagavam-se como epidemia nos Estados Unidos. Até pilotos da Força Aérea informaram ter sido perseguidos por "pires voadores". A sensação de pavor transformava-se em frenesi e a Agência Central de Informações (CIA) decidiu que era preciso fazer algo.
Num de seus muitos memorandos sobre o assunto, H. Marshall Chadwell, subchefe do Escritório de Informações Científicas da CIA, opinou que "algo estava ocorrendo e merecia atenção imediata". Ele e outros na agência receavam que a União Soviética estivesse desenvolvendo uma arma secreta baseada nos "discos voadores", que, segundo rumores, os nazistas haviam fabricado nos últimos anos da 2ª Guerra.
Documentos dos arquivos da CIA recém-liberados estão repletos de relatos de ex-cientistas alemães sobre seu desesperado trabalho para salvar a mãe-pátria com uma revolucionária aeronave circular capaz de alcançar velocidades enormes. Mas, em 1952, quando a CIA criou um grupo para estudar o fenômeno, descobriu algo extraordinário, muito mais perto. Logo além da fronteira, no Canadá, engenheiros britânicos produziam um disco voador próprio.
Chamava-se Projeto Y - uma incursão britânico-canadense no desconhecido, que foi em grande parte dos anos 50 o projeto de aviação mais sigiloso do mundo ocidental. Meio século depois, a história do Projeto Y continua sendo um capítulo notável e esquecido na história do design aeronáutico, que esteve na iminência de romper todas as normas do céu, mas redundou em amargo desapontamento por falta de dinheiro e de convicção.
Lá pelos anos 50, a notícia de que especialistas britânicos estavam construindo um "pires" alarmou a CIA. Os EUA estariam sendo passados para trás por seus mais tenazes aliados na corrida em busca de uma vantagem tecnológica? E, se a Inglaterra e o Canadá podiam construir um "pires voador", a União Soviética devia estar muito à frente.
Chadwell queria respostas. A sensação de urgência é palpável num memorando que ele mandou em junho de 1954 aos chefes de seu departamento, exigindo informações sobre o "emprego, por qualquer potência ou nação estrangeira, de tipos não convencionais de veículos aéreos, como os ou semelhantes aos aviões `com formato de pires' em fase de desenvolvimento a cargo dos britânicos e canadenses". Enquanto agentes da CIA eram despachados para vigiar o céu à procura de "pires voadores", oficiais da Força Aérea dos EUA faziam visita a Malton, perto de Toronto, onde ficava o aeroporto da cidade. Malton também era centro de pesquisas da Avro-Canada.
A Avro era subdidiária da companhia britânica de aviação AV Roe (contava a lenda que não havia no teto da fábrica espaço para incluir o "e" de Roe) que por sua vez fazia parte do lendário grupo de produção aeronáutica Hawker-Siddeley.
Durante a guerra, seus engenheiros ficaram famosos por causa do caça Hurricane e do bombardeiro Avro Lancaster. A seguir, sob a tensão da guerra fria, eles tentavam algo totalmente distinto. Depois da guerra, Malton era o local buscado pelos melhores projetistas de aviões que fugiam da condenada indústria aeronáutica britânica.
Um deles era John Carver Meadows Frost, de 31 anos, fala mansa e muito talento. Ele já havia conquistado a fama de ser projetista heterodoxo ao desenvolver o delgado De Havilland 108, avião de pesquisa com formato de andorinha.
Frost foi levado para a Avro-Canada para trabalhar no caça CF-100, feio e de nariz arrebitado, que ele nunca apreciou. Logo Frost ficou obcecado com desvios mais radicais da ortodoxia. Não dá para saber se ele buscou inspiração nas histórias cada vez mais populares sobre "pires voadores" pilotados por extraterrestres que flanavam nos céus pós-guerra fria ou até que ponto ele se baseou em pesquisas anteriores.
Talvez Frost tivesse ouvido falar do "efeito Coanda", assim chamado em homenagem ao inventor franco-romeno Henri-Marie Coanda, que fizera experiências com a primeira turbina rudimentar a jato em 1910. Coanda descobrira que um turborreator não dava apenas empuxo. Sugando ar, podia também criar um vácuo sobre a asa e assim dar mais sustentação.
São muitas as evidências de que na etapa final da 2ª Guerra, quando os dois lados lançaram caças a jato na refrega pela primeira vez, os nazistas começaram a fazer experiências com armas secretas baseadas no "efeito Coanda". Um dos documentos existentes nos arquivos secretos da CIA é uma entrevista concedida por um engenheiro aeronáutico alemão, Georg Klein, que afirmava ter trabalhado num "pires voador" sob a chefia de projetistas da Luftwaffe, Rudolf Schriever e Richard Miethe.
Outro documento que se encontra nos arquivos é um artigo escrito em 1950 por um alemão emigrado para o Chile, que dizia chamar-se dr. Eduard Ludwig. O artigo, oferecido a uma revista chilena mas ao que parece nunca publicado, levava o título: "O mistério dos `discos voadores' - uma contribuição para sua possível explicação." Contava sobre o trabalho de Ludwig no tempo da guerra num centro de pesquisas da Junkers, ajudando a desenvolver uma "asa metálica formada de uma só peça" que funcionava como um "topo de alta rotação", capaz de fazer decolagem vertical e alcançar grande velocidade.
"As experiências revelaram-se extremamente difíceis e resultaram em muitas vítimas", comentou o professor, visivelmente desgostoso porque o topo rotativo não dera certo antes de o Exército Vermelho chegar. Ele concluiu: "O futuro vai mostrar se os `discos voadores' são apenas fruto da imaginação ou se resultam da ciência alemã mais avançada que possivelmente, a exemplo das bombas atômicas quase prontas, podem ter caído em poder dos russos."
De fato, alguns dos maiores engenheiros da Luftwaffe foram parar em Moscou, enquanto um punhado, como Wernher von Braun e dr. Miethe, foram despachados às ocultas para o Ocidente. Claro que o dr. Von Braun se tornou o pai do programa espacial dos EUA. Ninguém sabe ao certo o que foi feito de Miethe.
No seu trabalho em Malton, John Frost pareceu que ia às apalpadelas. Ele estava à procura do Santo Gral da aeronáutica, a espaçonave de decolagem e pouso vertical (VTOL), mas começou as pesquisas num aparelho com formato de pá antes de se fixar, em 1953, num disco. A concepção original previa um só turborreator chato para sugar o ar de cima e forçar sua passagem através de bocais situados na periferia do aparelho. Um colchão de ar o manteria suspenso e o efeito Coanda o impulsionaria para o alto.
O trabalho inicial foi feito em sigilo total. Só alguns empregados da Avro foram informados do que se passava, e até alguns dos engenheiros que criavam componentes individuais não ficaram sabendo do que se tratava. "Aquilo era tão sigiloso que, quando Frost ia à oficina de soldagem, desenhava num papel a peça que queria e, quando a terminávamos, púnhamos o desenho num saco de lixo especial", lembrou Alex Raeburn, chefe da oficina da Avro na época.
Verne Morse, o fotógrafo da companhia, só se familiarizou com o projeto quando este já assumia forma definida. "Corria pela fábrica o estúpido rumor de que estávamos construindo um pires voador e todo mundo ria", contou Morse. "Lá um belo dia fui chamado pela segurança, e me disseram que eu precisava submeter-me a exames de idoneidade porque estávamos trabalhando num pires voador. Minha primeira impressão foi achar que aquilo era ridículo." Mas, quando fizeram Morse passar por guardas e atravessar as portas duplas do Projeto Y, ele viu o lustroso disco de metal tomando forma e perdeu a fala. "A impressão foi realmente espantosa", lembrou Morse.
Mas o primeiro ano do Projeto Y foi cheio de transtornos. A turbina a jato esquentou tanto que derreteu a estrutura de aço do aparelho, e seus solavancos arrancaram os rebites. Quando membros da Força Aérea dos EUA (Usaf) chegaram em setembro de 1953, o governo canadense, que já havia gastado US$ 400 mil no projeto, transferiu de bom grado sua chefia a um patrocinador maior. A AV Roe, que não conseguira arrancar recursos do governo britânico, também recebeu os americanos de braços abertos.
Em 1955, o Projeto Y tornou-se o sistema 606A do Departamento de Defesa (Pentágono) dos EUA, e uma estrela branca da Usaf foi pintada na fuselagem do protótipo. Agora, milhões de dólares eram despejados no projeto e a preocupação com o sigilo aumentou.
Alex Raeburn lembrou que num certo dia de 1959 homens da Marinha dos EUA chegaram para levar o protótipo e submetê-lo a testes no túnel de vento perto de Los Angeles. "Nós o colocamos num caminhão de fundo chato no meio da noite. Policiais interditaram o trânsito até o Porto de Toronto e puseram o protótipo num rebocador americano. Um de nossos homens precisara prestar juramento à Marinha dos EUA para que pudesse acompanhá-lo através do Canal Erie, ao longo do curso d'água intercostal de Nova York, e atravessasse o Canal do Panamá."
Com a ajuda dos recursos americanos, Frost havia redesenhado o projeto original, instalando três pequenas turbinas a jato em torno de uma ventoinha central que sugaria o ar através de um coletor circular situado no centro do disco. O piloto ficaria sentado numa pequena cabine oval de lado, sob uma cápsula.
Mas os testes no túnel de vento mostraram que a arma secreta 606A tinha sérios problemas de estabilidade e corria o constante risco de dar cambalhotas como uma panqueca quando as válvulas de suas turbinas fossem abertas. Frost e seus assistentes trabalharam na solução dos problemas durante mais de um ano, mas ainda não os haviam eliminado no inverno de 1960 quando Spud Potocki, ex-piloto da Força Aérea polonesa, entrou no protótipo para o primeiro vôo.
Ernie Happe, outro engenheiro britânico, foi um dos poucos que tiveram permissão para assistir à decolagem. "Estávamos em volta do protótipo, amarrado por três cabos para impedir que desse cambalhotas. Ele se ergueu alguns metros do chão, com Potocki sentado na cabine mexendo nos controles, tentando fazer com que ele funcionasse conforme previsto."
Nos meses seguintes, enquanto Potocki desenvolvia maior sensibilidade para com os melindrosos controles, permitiram que ele circulasse pelo complexo da Avro, sem peias. Podia entrar nos hangares e sair. Raeburn às vezes olhava através da janela de sua oficina e via o protótipo flutuar. "Ele (Potocki) subia e descia, pairava sobre a praça de manobra feita de concreto e olhava pelas portas dos hangares", contou Raeburn. "Lembro-me de que o vento chupava o gelo das poças dágua, que flutuava como lâminas de vidro."
A diretoria da Avro ficou muito contente de ver seu pires voador decolar. O departamento de propaganda começou a preparar folhetos para explorar o ilimitado potencial da aeronave no dia em que o manto de sigilo fosse removido. O aparelho se chamaria Avrocar e daria origem a uma série de naves civis e militares. Haveria um Avrowagon para a família do futuro, um Avroangel (uma ambulância aérea que partiria a toda velocidade para o local de um acidente) e um Avropelican (para resgates aéreos no mar e guerra anti-submarina).
Ken Palfrey, um desenhista do projeto, lembra as grandes esperanças que Frost depositava em sua empreitada. "Ele planejava produzir um que fosse quatro vezes maior, levar tropas para dentro e fora do campo de batalha, conforme os helicópteros fazem hoje."
Os gigantescos veículos de transporte de tropas passariam sob o radar do inimigo, lançariam seus ocupantes e subiriam velozmente para a estratosfera antes mesmo que o outro lado conseguisse localizá-los. Happe lembra que Frost se emocionava visualizando a espaçonave a ultrapassar as camadas superiores da atmosfera e atravessar continentes num só embalo.
A realidade era mais prosaica. O Avocar pairava bem quando perto de terra firme, mas ficava perigosamente instável a alturas pouco superiores a 2,4 metros, por mais que Spud Potocki se esforçasse nos controles. A Usaf queria instalar no Avocar uma cauda de avião para ver se sanaria o problema, mas Frost, purista do design, rejeitou a idéia.
"Ele não ia aceitar aquilo. Quando os americanos fizeram a sugestão, foi a única vez que vi Spud ficar com raiva", lembra Palfrey. Frost insistiu que conseguiria solucionar as deficiências, mas as forças armadas americanos perdiam interesse bem depressa. Depois de gastar US$ 7,5 milhões, o Departamento de Defesa cancelou o projeto no fim de 1961, acabando com o Avrocar e infligindo um golpe fatal na Avro, que ainda lutou por alguns anos, mas faliu em 1965. Frost partiu do país em 1961, amargurado. "Ele estava farto", disse Palfrey. "Foi uma triste história. Ele era um cara excelente. Um cavalheiro."
O projetista britânico foi parar em Auckland, onde passou o resto de seus dias sonhando produzir engenhocas para a companhia Air New Zealand entre elas uma rampa de acionamento hidráulico na cauda, para que os mecânicos tivessem fácil acesso aos aviões comerciais. Mas aquilo era café pequeno se comparado às ambições cósmicas do Projeto Y e a sensação de que Frost fora traído parecia-lhe tão aguda quanto antes, quando ele se aposentou, em maio de 1979.
Nas entrevistas com que se despediu, Frost declarou à imprensa local que sir Christopher Cockerell lhe roubara o mérito de ter inventado o hovercraft. A ironia é que, em Malton, os olhos de Frost estavam tão presos aos céus que ele não conseguiu perceber o potencial terrestre do Avrocar, bem à vista. Frost morreu poucos dias depois de deixar o emprego. Tinha 63 anos.
A lenda do Projeto Y sobrevive nas páginas da World Wide Web da Internet mantidas por ufólogos devotados. Alguns especulam que foi um sucesso espantoso e a triste lengalenga sobre erros de projeto e acontecimentos decepcionantes, lembrados por veteranos da Avro, não passava de disfarce. Outros acreditam que o projeto foi mera cortina de fumaça para o "verdadeiro" projeto do pires voador do Pentágono, desenvolvido em bases secretas como a de Roswell, talvez por misteriosos nazistas aposentados como o dr. Miethe.
Quanto à arma secreta 606A, o protótipo está empoeirando no canto de um armazém em Maryland, depósito do Museu Nacional de Aeronáutica e Espaço. Jack Walker, veterano piloto que mostra o armazém a visitantes, não consegue entender por que alguém quereria ver o 606A e pede que eu não me aproxime muito, pois posso ser sequestrado por extraterrestres.
O disco de metal polido, de 15 metros de diâmetro, está esquecido sob a asa de um caça Black Widow da 2ª Guerra Mundial. A cápsula sobre a cabine foi removida, seu painel de instrumentos está dentro de uma caixa de papelão nalgum outro lugar. Mas ainda se pode ver onde as bordas foram carbonizadas quando o visionário John Frost fez a vã tentativa de ganhar os céus.
Walker está ficando impaciente e balança a cabeça. Estamos demorando demais num beco sem saída da aviação e é preciso ver aviões muito mais importantes. "Não sou engenheiro aeronáutico", grita ele por cima do ombro. "Mas digo que aquilo não ia voar de jeito nenhum."
O Estado de São Paulo - Domingo, 19 de setembro de 1999
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